Desde os primórdios, os homens já contavam suas histórias por meio de gestos, arte rupestre, etc. Talvez fossem verdadeiras, talvez não. Mas, de qualquer forma, passavam sua mensagem. Só que se, hoje, eu saísse pintando as paredes por aí, provavelmente, seria preso. Então, faço desse blog minha caverna. Sejam bem-vindos.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Por trás dos pensamentos

           Era o mesmo ritual de todas as manhãs. Já tinha decorado os minutos, dava o tempo exato de dois cigarros. Ficava recostado na grade amarela da passarela que me separava da rodovia alguns metros abaixo. Ela sempre vinha apressada, e corria para pegar o trem. Eu fingia que não a via passar, logo, depois de dar alguns metros de distância, saia atrás. Corria de maneira leve, em cima de saltos finos e compridos. Parecia impossível alguém se equilibrar com tamanha graça e beleza em cima daqueles sapatos. Mas eles tornavam seus pés 35 mais perfeitos, se isso é possível. Descia as escadarias com pressa, eu fazia o mesmo, só que com a maior discreticidade possível. Esperava entrar duas portas depois de mim, sempre no mesmo vagão. Ela se escorava nas portas do lado que elas se mantinham fechadas. Abria sua bolsa e pegava um livro. Lia uma biografia de George Orwell. Já tinha lido algumas obras durante o tempo em que a analiso. Por falar nisso, hoje é nosso aniversário de nove meses de observação. Contei para alguns amigos, me chamaram de louco. Usava sempre a desculpa de que nosso "relacionamento" estava evoluindo. Mês passado, enquanto bocejava, ela olhou para mim. Foram só alguns segundos, mas foram intensos. Eu senti a vibração entre a gente. Fazia sempre o mesmo gesto, no tempo que ficava lendo. Passava a mão em sua franja, colocando-a para trás da orelha direita, repetia isso mil vezes, já que os fios insistiam em escapar. Tinha o cabelo negro e liso. Quando admirava esse momento, podia sentir a maciez, o cheiro e era como se eu arrumasse cada fio de sua franja. Era a criatura mais linda que eu já tinha visto. E tinha estilo. Eu gostava de suas roupas. Hoje, vestia uma blusa que cobria um só ombro, com uma imagem em preto e branco da Marilyn Monroe. A calça jeans era apertada, justa nas pernas. Essas calças sempre realçavam seu corpo. Com todo o respeito que tenho por aquele belo ser, que bunda ela tem. Hoje eram sapatos, mas, geralmente, calçava um par de All-Stars brancos. Ao mesmo tempo em que me passava doçura e, por que não, ingenuidade, me proporcionava os melhores sonhos eróticos. E o melhor, acordado. Seguia os vinte e poucos minutos de viagem nessa condição. Eu hipnotizado, e ela como sempre. Sem me dar uma única pista do que pensava. Por um lado era bom, me deixava livre para imaginar os mais impossíveis devaneios. Tinha traços suaves, os olhos tinham linhas orientais. O nariz era pequeno, e um pouco arrebitado. Mas o melhor era sua boca. Quando mordia os cantos dela me convidava para sonhar com um beijo. Fantasiava tocar aqueles lábios esculpidos, assim como o resto do corpo. Eu pensava em dizer para ela tudo o que vinha imaginado esse tempo todo. Formulava várias maneiras de fazer isso. Pensei que se eu simplesmente parasse em sua frente, a encarasse por alguns segundos, e a beijasse, tudo se resolveria. Nesse momento, meu sonho é interrompido. O piloto pede que todos saiam do trem, tínhamos chegado à última estação. Vejo partir a menina que alimentava o meu sonho de todas as manhãs. Mais um dia não tive coragem. Mais um dia à perdi.

***

            Mais uma vez eu subia a passarela e o via parado, fumando um cigarro. Não gostava de cigarro, mas confesso que ele fazia aquilo parecer mero detalhe. Ficava até mais atraente. Eu passava apressada, fingindo não saber que ele me seguia, o difícil era caminhar rápido e me equilibrar nos saltos. Descia as escadarias correndo e alternava a velocidade com que caminhava, era engraçado o ver tentando me seguir, sem levantar suspeitas. A primeira vista me pareceu patético e doentio, agora, achava “bonitinho”. Sempre entrava duas portas antes de mim. Ele jurava que eu não via. Entrava e me apoiava em uma das portas. Não parava de me olhar. Eu mantinha o maior cuidado para não deixar que me visse olhando para ele. Nosso “caso” já durava uns oito meses, eu acho. Enquanto lia, via que ele me observava à viagem inteira. Nunca li um capítulo se quer dos livros. Para ser sincera, levava obras que já tinha lido. Usava o papel como refúgio caso ele me visse o encarando. Ele tinha o cabelo bagunçado, a barba por fazer. Mas tudo de maneira bonita. Tinha cara de mau, de safado mesmo. Isso me excitava. Contudo, o jeito com que tomava cuidado para que não notasse seus olhos me fitando incessantemente, como uma fera analisa sua presa, me fazia conhecer seu lado romântico. Eu gostava disso. Hoje, usava uma camisa gola V branca, um pouco justa, o que realçava seu corpo malhado. Nós pés usava um tênis marrom, combinando com a calça jeans. Quando ele se distraía, podia o analisar por mais tempo. Algumas vezes imaginava um jeito de atraí-lo. Vontade não me falta, mas o que sentia por ele era mais do que simples atração física. Não sei explicar direito. Certa vez, ele me encarava, como de costume, e em um lapso deixei escapar-lhe um olhar. Direto e confessional. Foi o suficiente para ficar arrepiada o resto do tempo. Por sorte, o desviei rapidamente. Acho que ele não notou, até por que, se tivesse notado, teria feito alguma coisa. Aqueles quase trinta minutos viajando sobre a observação dele, me deixavam esperançosa. Eu torcia para que me beijasse sem avisar, apenas me olhasse por poucos segundos. Eu entenderia. Esperava isso toda vez que estávamos chegando ao fim da linha. Mais uma vez, o piloto anuncia a chegada na última estação. Acho que não dou brecha. Deveria começar a lhe dar mais sinais. Sai caminhando sem olhar para trás, tentando imaginar o que ele estaria pensando. Mais um dia não tive coragem. Mais um dia o perdi.

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