Desde os primórdios, os homens já contavam suas histórias por meio de gestos, arte rupestre, etc. Talvez fossem verdadeiras, talvez não. Mas, de qualquer forma, passavam sua mensagem. Só que se, hoje, eu saísse pintando as paredes por aí, provavelmente, seria preso. Então, faço desse blog minha caverna. Sejam bem-vindos.

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Obra da vida...

Como canta pesado o galo ás seis horas da manhã de uma sexta-feira. Talvez ele saiba que a situação anda propícia para que o assem. Mal sabe ele que seu canto esganiçado acaba de acordar um homem. Ele tem diversos nomes, pode ser João, Manoel, Paulo, Joaquim, até Euclides. Porém, hoje, é José. Levanta-se da cama de forma decorada. Depois de anos, desvia com destreza das cinco crianças que dormem espalhadas pela casa. Caminha pela única peça do barraco em direção a um pequeno balde azul, perto da porta. Balde que, aqui, é conhecido como banheiro. Depois de feito o ritual matinal – sem café da manhã, já que não se encontra comida na casa – vai para rua, onde despeja os dejetos em qualquer canto. Só agora, mesmo com o céu ainda escuro, mostra-se um homem envelhecido. Não pela idade, mas pela dor. Os cabelos crespos e negros, tez escura. Olhos verdes e belos de um jovem de 32 anos. Cercados, é claro, por rugas profundas, marcadas sem dó pelo sol. Alguns dizem que é um pecado olhos tão vivos serem rodeados por vincos tão tristes. Como um Cézzanne em moldura feia, desgastada. 


Era forte, peito e ombros largos. Um milagre, pois não se alimentava direito. Contudo, poderia ser resultado do trabalho de pedreiro – profissão que herdara do pai – um exercício árduo todos os dias. Exercício foi uma maneira menos cansativa de expressar o que faz José. Poderia muito bem chamar de sacrifício. Com o perdão da rima. Vestia uma de suas três camisetas e uma calça jeans desbotada. No pescoço e tornozelo, trazia as guias de sua religião. De família tradicional negra, sempre cumpriu suas obrigações com o Candomblé. Morava em um conjunto habitacional irregular de famílias de baixa renda. Mais conhecido como favela, ou invasão. As ruas não tinham nomes, pelo menos, não registrados. Por exemplo, o beco onde mora José é chamado de “arranca chinelo”. Nome auto-explicativo, e disso as Havaianas de José sabiam bem. Por fala nisso, o prego que segura as tiras do chinelo velho, machucavam José mais do que o comum hoje. Deu um beijo nas crianças que ainda continuavam dormindo. Despediu-se da esposa e saiu. Afinal, precisava pegar dois ônibus para chegar até a obra que estava trabalhando atualmente. E o tempo dobrava indo de bicicleta, já que José não tinha dinheiro para a passagem. Passagem que tinha aumentado nessa semana. Ainda bem que calibrar o pneu era de graça. Enquanto pedalava, analisava tudo. O cenário geral. 


O caminho da vila onde morava até o centro da capital ia se transmutando aos poucos. Quadro a quadro, do inferno ao purgatório. Ao contrário do que muitos pensam, José terminou o Ensino Médio. Sem repetir nenhum ano. Sem atrasar nada. Sempre gostou de estudar. É um leitor inveterado dos jornais e apreciador dos noticiários radiofônicos. Os que conhecem o lado intelectual dele, não entendem por que segue trabalhando como um simples pedreiro. José é pedreiro por escolha, por tradição, por respeito a seu falecido pai. No fundo gosta do que faz. Assim como a paisagem do trajeto até o trabalho, que se desfaz e se reconstrói, ele gosta ver a evolução de tijolo por tijolo. Contemplar, no final, a estrutura que suas mãos ajudaram a fazer. Já pedalava há algum tempo, quando avistou um banco velho por onde passava todos os dias. Parou a bicicleta e a recostou na parte de trás do assento. Sentado, olhava para o céu ainda escuro, porém, agora, querendo dar espaço a claridade. José fechou os olhos, com a cabeça ainda erguida, parecia que esperava alguma coisa. Foi quando sentiu, que sensação maravilhosa. Um feixe de luz aquecia parte do seu rosto. Era um raio de sol que rasgava impiedosamente o nublado céu da manhã. Que magnífico. Luz, que na opinião de José, pintava o dia. Como um balde – dessa vez um balde mesmo, não um banheiro improvisado – de ouro derretido que escorria sobre a sombra a tornando bela. Amava o Sol, mesmo sabendo que era aquele Sol que fazia tanto mal à sua pele.  Refletindo por aqueles minutos ali parado sob o a luz do astro rei, era como se passasse um filme em sua cabeça. Nesse momento se compreendia a genialidade daquele o homem. José entendia a importância da sua existência. Apesar de a maior parte dos seus semelhantes fazer pouco caso de sua vida. Para eles, era só mais um pobre coitado, com uma vida horrível. Fazia parte do atraso no processo civilizatório da sociedade. 


Só que, aquele simples pedreiro, elucidava algo maior quando era tocado por aqueles raios de sol. Era privilegiado pela mesma sensação de quando construía uma casa e via o resultado de sua obra. Agora, José entendia que tinha um papel fundamental. Era o tijolo de uma construção incomensurável, muito maior do que as que está acostumado fazer. Ele, assim como todos nós, é uma peça-chave. Pegou a bicicleta e voltou a pedalar em direção a cidade. Seguia seu destino feliz e agradecido. Fazia parte, desde sempre, de uma construção desmedida e ininterrupta. A obra da vida.

terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Olhar só



Ela entrou, fazendo de todos platéia do divino

Transmutando cada homem em mero menino

Decoração, talvez, para aqueles olhos azuis penetrantes

Olhos sorrateiros, inelutáveis, nunca vistos antes

Não eram bons, nem ruins. Eram de redenção.

Olhar impecável onde se encontrava alívio. Perdão.

Perdão por cobiçar aquela perfeita criatura,

Quiçá por pensar que não existe aparente doçura

Entretanto, o belo ser que faz de tantas gargantas nó

Não carrega olhar misterioso, apenas o de quem está só.