Desde os primórdios, os homens já contavam suas histórias por meio de gestos, arte rupestre, etc. Talvez fossem verdadeiras, talvez não. Mas, de qualquer forma, passavam sua mensagem. Só que se, hoje, eu saísse pintando as paredes por aí, provavelmente, seria preso. Então, faço desse blog minha caverna. Sejam bem-vindos.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

31

Já passavam das quatro horas da tarde. Estávamos em direção a qualquer cidade do interior, que não sabia ao certo onde era. Nunca gostei de viagens de ônibus, principalmente das vezes em que peguei o ônibus errado. Mas, como de costume, joguei a culpa no fiscal que não me avisou. Estava sentado na poltrona 31, bem na janela. Paramos em mais um ponto. “Parada de 15 minutos”, gritou o motorista. Não quis descer, não gostava daquela gente que vinha no ônibus. Ainda mais pelo clima natalino que trazia o dia 25. Confesso que, por alguns momentos, torci para que aquele ônibus estragasse. Assim, nenhuma daquelas pessoas chegaria em casa. O Natal sempre foi, para mim, uma reunião da família onde todos fingem que nada de ruim aconteceu. Esquecem os problemas, se abraçam. E na outra semana as diferenças voltam. É ridículo, para não dizer podre e hipócrita.
Por algum motivo – não lembro bem o que foi –, desci do ônibus. Caminhei até uma lancheria próxima. Vi uma mulher que viajava nos lugares à minha frente. Ela carregava duas crianças. Sou ateu, mas essas crianças começaram a me fazer acreditar que o demônio existe. Disso vocês já podem tirar uma ideia de como eram maravilhosos aqueles "pequenos". Pensei com todas as minhas forças para que o pastel que o mais novo comia estivesse estragado. Nosso ônibus não tinha banheiro e eu tenho péssimo olfato.
Segui mais alguns metros até uma mesa do lado de fora do bar. Sentei e pedi uma bebida. Tentei o uísque; já devia ter imaginado que aquela pocilga não teria. Bebi Coca-Cola mesmo. Notei que um homem estava à minha esquerda, também sentado. Ele usava um boné de campanha política, com o número 31, o candidato da propaganda já tinha até morrido. Ele nem devia saber. Tinha a barba mal feita, usava uma bermuda surrada e havaianas. Tinha os olhos cheios de lágrimas. Reparei mais um pouco e notei o motivo do choro. Um menino estava à sua frente. Não parecia sujo, mas também era muito pobre. Usava uma camisa florida (provavelmente doada por um surfista dos anos 70, de tão brega), uma calça jeans desbotada pelo tempo – até por que seria impossível ele saber alguma coisa de moda. O cabelo estava muito bem penteado, todo ele para o lado direito. Acho que tinha passado gel. Os dois conversavam sobre uma viagem, certamente do menino, já que ele tinha uma mala entre as pernas. Eles seguravam um as mãos do outro e choravam.
Mesmo não gostando de nada naquele lugar, os choros de pai e filho me deixavam profundamente enojado, mas, ao mesmo tempo, não conseguia parar de prestar atenção naquela cena. O pai repetia diversas vezes que amava o garoto, e o mesmo falava: “Eu também te amo, pai”. As lágrimas caíam. Eu me irritava cada vez mais. Então, lembrei de meu pai, com quem, por sinal, não falo há quatro anos. Tentei lembrar alguma vez em que meu pai disse que me amava. Só me vieram à cabeça os diversos xingamentos e um tapa no meu rosto. O motivo do rompimento de qualquer relacionamento.
O homem começou a relembrar de algumas coisas que fizeram juntos. O menino sorria e chorava, assim como seu pai. Eles falavam, quase que em uma só voz, do primeiro dia em que o rapaz andou de bicicleta, do jogo de futebol, do dia em que pescaram juntos. Eu invejei aquele menino como nunca invejei alguém. Tentava entender por que aqueles dois tão pobres, naquele fim de mundo, tinham tantos motivos para sorrir. De repente, recordei de uma vez, a única, diga-se de passagem, que meu pai disse que me amava. Acredito que eu tinha uns oito anos, eu havia passado um dia inteiro com ele. Naquela época, ele me tratava muito bem, era o melhor pai do mundo – costumava chamá-lo assim. Minha mãe ainda era viva naquele tempo. Ela morreu faz 12 anos. Mais ou menos o tempo em que meu pai começou a me odiar. Irônico, não?
Os dois continuavam naquele momento familiar, quando o ônibus do garoto chegou. Eles se despediram, pude sentir os dois soluçando e as lágrimas deles pareciam correr no meu rosto. Eles se abraçaram. Foi o segundo abraço mais sincero e bonito que vi em toda minha vida. O menino foi até a porta, olhou para o pai e sorriu. Ainda na janela o garoto continuava a olhar o pai, que o retribuía com os mesmos olhares carregados de ternura e amor. Podia ler nos lábios dos dois uma única frase: “Eu te amo”. Não sei se um dia poderei dizer isso para alguém... A condução partiu. Sem pensar, caminhei até o homem. Parei ao seu lado e o encarei. Ele se virou e também o fez, com o rosto ainda molhado pelo choro. Ficamos alguns minutos nos encarando. De alguma forma parecia que ele decifrava meu olhar, até que disse: "Ele é a única coisa que eu tenho, não gostei da ideia de ele viajar sozinho, mas eu o amo. A gente tem que aprender a apoiar, a compartilhar das ideias, entender a quem nós amamos. Não é mesmo?". A pergunta do homem ecoou na minha cabeça. Fiquei paralisado sem saber o que responder. Ele se virou e começou a partir. Não consegui me mexer. Ao mesmo tempo em que tentava entender por que ele tinha me dito aquilo, sentia que ele sabia de meu pai. Corri até um ônibus que saía para minha cidade. Depois de muito argumentar, convenci o fiscal a me deixar ir junto. Deu-me a poltrona 31, de novo. Tinha que ver meu pai. Tempo era o que mais me faltava, ou melhor, faltava a meu pai. Esqueci de comentar, ele estava no hospital. Seu terceiro câncer. Um no intestino, um na coluna e o último na garganta. Meu pai sempre foi um homem de muitos vícios.
Saí de um ônibus ateu, entrei em outro rezando para que ele ainda estivesse vivo. Desembarquei na rodoviária da capital; continuava o mesmo lixo de sempre. Ia pegar um táxi. Vi que o único que sobrava era um carro popular horrível. Neguei-me a pegá-lo, mesmo o motorista tendo me avisado que o próximo iria demorar meia hora. Não podia chegar ao hospital naquele carro, era vergonhoso, conheço várias pessoas na cidade. Diferente do buraco por onde estava passando naquele ônibus velho. Realmente, o outro táxi chegou em exatos 31 minutos. Eu os contei no relógio, não confio em taxistas. Se demorasse mais, processaria a companhia. Peguei o táxi até o hospital onde, segundo um tio, estava meu pai. De carro, o caminho até o hospital não levava mais que 10 minutos, mas pareceram horas. Estava nervoso. Suava frio. Foi assim que entrei no hospital. Fui até o balcão de informações e perguntei por meu pai. A menina respondeu: "Quarto 31, final do corredor". Achei besteira, mas confesso que pensei no fato de meu lugar no ônibus ser a poltrona 31, e por duas vezes... Corri até o quarto, meu coração pulava no peito, minhas mãos tremiam. Eu com medo. Medo de não ter o que dizer, medo de não chegar a tempo, medo de não lembrar como é ser filho...
Cheguei ao quarto. E o vi.
Ele estava com vários aparelhos, mas com certeza uma sonda em seu pescoço era o que mais apavorava naquela cena toda. Ele abriu os olhos e me viu. Ficamos nos olhando, lembrei do momento em que encarei o pai daquele menino. Eu caminhei devagar até ele. Continuamos a nos olhar fixamente. Ele começou a movimentar uma das mãos, já sem forças. Colocou-a sobre a minha. Foi o momento em que senti a primeira das várias lágrimas que viriam escorrer em meu rosto. Abaixei-me e disse: "Perdão, pai!". Já chorávamos os dois. Por causa dos aparelhos, quando soluçava, ele fazia um barulho que me deixava muito pior. Ver meu pai daquele jeito me deixou com muita raiva de mim mesmo. Senti-me impotente, e era. Ele fez um sinal de positivo com a cabeça, me puxou para junto de si. Nós dois riamos e chorávamos abraçados, sentia o corpo dele, os cabelos, o cheiro, o amor que me passava. Foi o abraço mais sincero e bonito que vi, e o melhor é que participei desse. Com muita dificuldade, ele sussurrava: "Eu te amo”. Eu o repetia e beijava seu rosto, o chamando de “melhor pai do mundo”, como nos velhos tempos. Era uma mistura de dor e felicidade. Dor por ter passado tanto tempo sem fazer isso, felicidade por, finalmente, tê-lo feito. Foi quando uma fisgada surgiu em meu peito. Senti que a respiração de meu pai tinha parado. Os aparelhos confirmavam a sua morte. Foi como se pudesse sentir ele indo embora. A dor era enorme, mas o fato de ter recebido, e dado também, o perdão de meu pai, me deixava feliz. Chorando, eu entendi o que aquele homem quis dizer. Apesar de todas as diferenças, eu amava meu pai, o melhor pai do mundo. E, agora, sabia que ele sentia o mesmo.
Isso tudo poderia ser verdade, eu poderia estar feliz por ter falado com meu pai antes de morrer, mas cheguei atrasado ao hospital. Ele havia morrido há 31 minutos. Havia deixado uma carta, dizendo que sentia falta de seu único filho, e entendia os motivos de eu não querer mais falar com ele. Escreveu que me perdoava e que era a maior dor que já sentiu não poder ouvir o mesmo de mim. Descobri depois disso que não ser amado é ruim, mas não poder amar é pior ainda. Assim termino esta carta de suicídio. Não estou morrendo hoje por que não gosto da minha vida, ou por ser uma vítima. Só quero encontrar meu pai e dizer a verdade: eu também o amo.

Ass.: Um certo filho.